Lembro-me de seis anos atrás, quando encontraram a criança próxima
ao rio da sereia. Era um bebê forte, um garoto. Pousado ao lado dele
encontrava-se um grande corvo. O pescador que o encontrou teve receio de se
aproximar, temendo que a enorme ave o atacasse, mas depois de um tempo ele
conseguiu pegar o menino e lava-lo para a aldeia.
Foi um grande alvoroço naquele dia. As
pessoas, curiosas sobre o estranho bebê, se reuniram na grande tenda de nosso
senhor. Era como um garoto normal, não fossem as orelhas pontudas e o enorme
corvo que não saia de seu lado, detalhes que intrigavam ainda mais meu povo.
Daaga, o oráculo de nossa tribo, depois de muito examinar, disse não saber a
origem da criança, mas que os homens que viviam na Floresta Wëa, além do rio,
poderiam saber.
Os que viviam além do rio eram chamados de
“Os Filhos de Fähara” e diziam-se donos de todo lugar ao sul do mundo,
inclusive das terras de minha tribo, mas não exigiam nada de nós. Meu pai
contava que eles estavam ali muito antes de nossos primeiros ancestrais, vindos
do norte, atravessarem o grande deserto de gelo e fizerem morada nas terras do
sul.
Como os Filhos de Fähara eram vistos
raramente e preferiam não se misturar com os nossos, foram enviados emissários de
minha tribo até a Floresta Wëa, pedindo ajuda.
Os homens da floresta chegaram com a noite em
nossa aldeia, dois dias após o retorno de nossos emissários. Eram três. Eles tinham
o dobro do tamanho de qualquer um de minha tribo, até mesmo do maior de nós. Os
cabelos eram negros, de aspecto sujo, sem nenhum brilho. Trajavam grossas peles
de animais, que pareciam ser de lobo ou urso. Um odor forte os acompanhava.
Havia símbolos estranhos desenhados em seus rostos com uma tinta azulada. Não
possuíam nenhum tipo de arma aparente.
Daaga estava com a criança no colo, próximo a
uma fogueira. O recém-nascido chorava muito. O menor dos homens da floresta foi
ao encontro deles. Tinha o olhar penetrante e aparentava ser um feiticeiro
pelos trajes e amuletos que usava. Não se via um sorriso ou gesto de
cordialidade vindo dele. Parecia um lobo soberano, caminhando entre ovelhas.
O feiticeiro pegou o bebê nos braços, que
logo parou de chorar. Levantou um dos braços para o enorme corvo pousar. Olhou fixamente
nos olhos da ave, os dois pareciam se comunicar. Depois de um tempo o corvo esticou
a cabeça e bicou o centro da testa da criança. Não se ouviu nenhum choro. As
pessoas pareciam assustadas, mas estavam imóveis, curiosas sobre o que
acontecia. O homem devolveu a criança ao Oráculo e logo depois passou a unha
pelo peito do corvo, fazendo um pequeno corte, com o sangue que escorria ele
fez desenhos pelo corpo do bebê, começando pela testa e indo até os pés. Era um
ritual. O primeiro que presenciei em minha vida.
Terminado o rito o Feiticeiro de Wëa se
aproximou do Oráculo e entregou o bebê, os dois conversaram por um tempo. Daaga
disse em voz alta que aquele bebê era um Heddan, uma raça antiga, que havia
sido extinta de nosso mundo após uma grande guerra. O corvo era um Garú Wëa,
que na nossa língua significava algo como “animal antigo”, e tinha uma ligação
espiritual com o bebê. Disse também que a criança era uma dádiva para nossa
tribo, que deveríamos cuidar dela como se fosse filha de todos nós e, na idade
certa, um arauto dos velhos espíritos viria busca-la e leva-la até seu devido
lugar.
Aquela foi uma noite de festejos na aldeia. Os
homens da floresta partiram sem dizer adeus.
Com o tempo nós percebemos que o Feiticeiro
de Wëa estava certo no que disse. Nossas colheitas eram mais prósperas a cada
ano que se passava. Membros de outras tribos vinham de todas as partes para ver
o menino. Amavam e respeitavam a criança e isso evitou muitas guerras. O garoto
crescia forte, era tão amável que conseguia cativar até mesmo os de coração
mais frio. Fazíamos como nos recomendaram e criávamos o menino como se fosse
filho de todos nós, deixando-o comer, dormir e brincar onde quisesse.
Tudo
caminhava bem, até o dia do desaparecimento.
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